Arte invisível

Às margens do centro, cultura respira por aparelhos

Preconceito, marginalização e falta de oportunidades excluem jovens e negam o poder transformador da cultura nas periferias de Ribeirão Preto

Alessia Barbosa, Ana Ribeiro e Leonardo Gibeli
22 de novembro de 2024
Pixo localizado na rua Visconde do Rio Branco - Centro - Ribeirão Preto, uma expressão artística originada na periferia, frequentemente utilizada para evidenciar críticas sociais (Foto: Ana Ribeiro)

A periferia no Brasil se constitui com o processo acelerado de urbanização a partir da década de 1940, quando camponeses migraram para as cidades em busca de melhores oportunidades. Esse fluxo de pessoas aliado ao crescimento urbano descontrolado resultou na ocupação de áreas periféricas, com pouca ou nenhuma infraestrutura.

Alí, se aglomerou uma população sem escolaridade e capacitação profissional para os empregos existentes na cidade, sobretudo nas indústrias recém instaladas. A ocupação informal de áreas marginalizadas por administrações públicas ineficientes, sem saneamento básico, serviços de saúde e educação resultou em habitações precárias em bolsões de pobreza.

As sucessivas crises econômicas, ausências de políticas públicas inclusivas, a ditadura militar por longos 20 anos, agravaram as demandas daquela população. O quadro é ainda mais sério quando dos mais de 16 milhões de moradores dessas áreas, 72,9% são negros, reflexo do regime escravo existente até 1888.

Todos os grandes centros urbanos brasileiros se constituíram assim, divididos. Um centro rico, branco, ilustrado e culto. Uma periferia pobre, negra, analfabeta e sem recursos. Com cerca de 700 mil habitantes, Ribeirão Preto é um desses centros e passa por dificuldades quando o assunto é democratizar os espaços culturais e fomentar, em especial, arte e cultura periféricas.

Segundo o artigo 215 da Constituição Federal de 1988, o Estado deve “garantir pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional”, mas os sucessivos governos municipais ainda não enfrentaram os obstáculos para promover esse direito nos mais de cem núcleos de favelas presentes e nos bairros periféricos.

A Visão da Quebrada

Para o arte-educador, dançarino, MC e poeta, Tiago Spoken, as comunidades periféricas são carentes da atuação do poder público no fomento à cultura.  Spoken avalia que as opções de cultura e lazer em Ribeirão Preto, muitas vezes sequer são conhecidas pela população periférica. “A informação não chega até elas, apesar de termos muitos meios de comunicação.” 

Além disso, a falta de políticas públicas e de pessoas engajadas nessa pauta torna mais desafiador o processo de democratização cultural. “Muitas vezes, esse trabalho é como formiguinha, porque você bate a cabeça para conseguir algum recurso”, afirma o arte-educador.

A perpetuação dos preconceitos e da marginalização é uma consequência dessa problemática, principalmente relativa às expressões culturais nascidas nas periferias e que sofrem repressões por parte das elites. “Eles veem a cultura da periferia como algo errado, como algo de bandido, marginalizado.”

Para o arte-educador, que já realizou trabalhos de ressocialização na Fundação Casa e conhece as dificuldades que jovens enfrentam ao voltar para as comunidades, esse domínio social elitizado não impacta somente o âmbito cultural. “Eles [a elite] têm mais vantagens, mais favoritismo, na questão de emprego, de empregabilidade. Tem muitos experimentos sociais que mostram a realidade e nós vemos isso”.

“Eles veem a cultura da periferia como algo errado, como algo de bandido, marginalizado”, comenta o arte-educador Tiago Spoken (Foto: Ana Ribeiro)

Contexto Histórico e Políticas Públicas

De acordo com a doutora em História, professora Sandra Rita Molina, o tratamento com expressões culturais que geram uma diferenciação entre ‘periférico’ e ‘elitizado’ não deveria acontecer, uma vez que todo tipo de cultura deveria ser encarado como tal. “Eu fico um pouco desconfortável com essa coisa de cultura periférica porque você tende a pensar que existe uma cultura melhor e uma cultura pior, uma cultura central que é aceita, uma cultura periférica que é marginalizada”, afirma.

A historiadora ainda reforça que a questão racial é fundamental ao se discutir a cultura das favelas. O racismo enraizado na formação histórica do Brasil demonstra que essa percepção com relação às produções culturais periféricas não é recente. Segundo a professora, a construção do racismo, que começa a ocorrer logo após a abolição, se dá pela necessidade de separar brancos e negros e por conta do modelo econômico que precisa manter uma mão de obra barata e pouco qualificada. “O racismo estrutural perpassa a questão da produção cultural nos pré-conceitos que parte da população tem com a cultura que é produzida ali [na periferia]”.

A implementação de políticas públicas para promover e expandir culturas periféricas é imprescindível para a redução da criminalidade entre os jovens que vivem em situação de vulnerabilidade social. Sandra Molina explica que políticas como a Lei Rouanet e o ProAC, em que são abertos editais, podem ser acessadas por produtores de cultura alternativa. Para ela, os editais são democráticos. “Nós somos um país que acha que cultura e educação não geram emprego e renda e isso é um equívoco brutal. A cultura gera emprego, renda, diversidade e tolerância. Nós precisamos derrubar a ideia de que ela é algo menor, um capricho. Muito pelo contrário, é um excelente negócio”.

Além disso, a educação possui um papel de extrema relevância. Por meio dela, pessoas podem se conscientizar da possibilidade de acesso a espaços culturais. “Quem mora em Ribeirão Preto e é da periferia tem um certo preconceito de entrar no Teatro Pedro II, [pois] não acha que o espaço é deles, mas é. Se eu sou cidadão deste município e pago impostos diretos ou indiretos, eu tenho direito a usar os aparelhos culturais existentes. Não é só produzir espetáculos com baixo custo, é também fazer um trabalho de educação cultural para que estes cidadãos entendam que eles têm direito à cultura”.

“Nós somos um país que acha que cultura e educação não geram emprego”, comenta a historiadora Sandra Rita Molina (Foto: Alessia Barbosa)

Outro Lado

Para o ex-secretário de Cultura e Turismo, Pedro Leão, Ribeirão Preto enfrenta dificuldades orçamentárias e este seria o principal problema para a democratização cultural. “O orçamento da Secretaria de Cultura é inferior ao da grande maioria das cidades com o mesmo porte ou maior. Além disso, a Secretaria de Cultura e Turismo divide um orçamento pequeno para ambas as áreas”, afirma.

Mesmo com as dificuldades, Leão fala que a cidade vem passando por um bom momento e destaca políticas que buscam promover a diversidade cultural. “Criamos o programa municipal Cultura Livre, ampliando o atendimento em 124%, além das oficinas e dos equipamentos para execução do programa de formação e fortalecimento. O programa ‘Cultura em Ação’, um fomento municipal conquistado com a sociedade civil através do Conselho de Cultura, hoje conta com um orçamento de aproximadamente R$900 mil.”

“O orçamento da Secretaria de Cultura é inferior ao da grande maioria das cidades com o mesmo porte”, afirma o ex-secretário da cultura Pedro Leão (Foto: Leonardo Gibeli)

Leão afirma que durante sua gestão, atividades que faziam parte das culturas consideradas ‘marginalizadas’ foram retomadas. “Incentivamos causas de minorias com programação voltada para o público LGBTQ+, negros, periféricos, jovens e mulheres, realizamos eventos como o Festival da Consciência Negra e a retomada do Carnaval”, explica. 

Outra iniciativa foi levar atividades culturais para crianças e adolescentes de maneira descentralizada, buscando uma forma de facilitar o acesso. “ Com o ‘Cultura em Todo Lugar’, expandimos as atividades em centros culturais e levamos oficinas e programas para áreas carentes. Além disso, ampliamos as oficinas de formação e criamos cotas para pessoas de áreas vulneráveis, fizemos parcerias e eventos com centros culturais periféricos como o Sarau Preto no Centro Cultural do Quintino”, finaliza.

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