Políticas Públicas

“Esse povo existe e é gente”

Gabie Sertório e Matheus Gumiero
28 de novembro de 2024

Existem preconceitos que a sociedade impõe sobre as pessoas que estão em situação de rua, que as afasta ainda mais da sociedade. A professora Elizabeth Regina Negri, coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) analisa o contexto em que vivem esses cidadãos e cidadãs margilnalizados. 

Como a senhora enxerga a situação das pessoas que se encontram na trajetória de rua em Ribeirão Preto? 
Hoje a gente fala em pessoa em situação de rua. E quando você fala pessoa, você está exatamente se dirigindo a um ser integral, que tem as suas características. Nós temos pessoas que são do sexo feminino, nós temos transgêneros. A maioria perdeu os vínculos familiares, está sem nenhum tipo de afeto, a não ser os animais que eles carregam. Primeiro, eles dão comida para os cachorros e depois eles vão comer. É por isso que os cachorros não os abandonam. Então, o único laço afetivo que têm é com esses animais. A sociedade tem um preconceito muito grande e desenvolve ações assistencialistas, paternalistas, vão com comida, levam o cobertor. Nós que trabalhamos ligados ao serviço social, à psicologia,  temos uma outra visão, que é a de, por meio das políticas públicas, fazer a reinserção dessa pessoa na sociedade, na sua família. Essa política preconiza o que deve ser feito no sentido de emancipar essa população. 

A assistente social Elizabeth Regina Negri, coordenadora do curso de Serviço Social da Unaerp

Existe um fator pelo qual elas não aceitam  ajuda ou é muito individual, daquela hora?
É individual. Depende muito da própria condição e história de vida daquela pessoa. Por exemplo, tem casos que eles querem, vai família inteira às vezes, para o Centro POP. Outros não, não querem, não querem ter nenhuma regra, porque no Centro POP tem regra, tem horário de entrar,  de sair. Uns não querem, pois já se acostumaram com aquela situação de rua. 

A senhora acredita que teve alguma crise com o fechamento do Cetrem?
Vamos dizer assim, o Cetrem foi bom. Mas o Centro POP veio já com essa nova política de atendimento do SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Ele ampliou o atendimento. Lá no Cetrem cabiam poucas pessoas. Hoje o trabalho é maior, o espaço é maior e  atende a todos esses requisitos da assistência social. É uma expansão justamente por conta dessa política nacional de inclusão da pessoa em situação de rua. É uma política pública. Mas, eu não estou falando que isso é o suficiente, não. Eu acho que deveria haver mais ações direcionadas a esse segmento porque ele está aumentando principalmente pela fragilização do social. Nós temos o esgarçamento da sociedade por conta do desemprego.

Por que é tão caro para o Estado ajudar essas pessoas?
As pessoas pensam, às vezes, na higienização social, em colocar debaixo do tapete tudo aquilo que é feio. Eles acham que ter uma política pública como essa (o Centro POP),  já estão fazendo muita coisa. É a mesma coisa que a gente tem lá na Cracolândia. Por que não resolvem aquele problema?  Porque eles deixaram aquilo alastrar? É um fato que o Estado está muito mais preocupado com as elites, isso é histórico. Então, realmente, é assim que a gente vê essa população: desprovida desse aparato estatal. Poderiam criar outras políticas. Poderia colocar outros profissionais atuando para atender.

Baseado nisso a senhora acha que dá para fazer um comparativo da eficácia das políticas públicas e das ONGs? 
Tem todo um processo histórico. Nós temos um terceiro setor porque o Estado ficou mínimo e joga (o problema) no colo da sociedade. As ONGs, nada mais são do que esse terceiro setor que abraçou as causas. As ONGs fazem uma parte, mas  não fazem para todos,  não se faz uma coisa que abranja realmente todas essas pessoas. Assim, você não tem a universalização de direitos. Agora, quando existe uma política nacional que funciona, essas questões têm que ser muito mais alavancadas. E não estou falando só de Estado, pois  a gente tem o Centro Pop, mas Ribeirão tem um monte de morador em situação de rua. Sertãozinho tem, Cravinhos tem, todos os lugares têm.  Se fala muito em  não discriminar, mas a própria população faz isso. Esse povo existe e é gente. As pessoas passam, como se eles fossem invisíveis.  

E a senhora já se envolveu em um trabalho com alguma ONG?
Eu estou dentro do “Todos na fraternidade”,  junto com as professoras Sandra Molina e a Flávia Martelli. Nós trabalhamos lá já há algum tempo. Eu, como assistente social, trabalhei já em outras circunstâncias, depois é que eu vim para a docência. Há uns dois anos, mais ou menos, eu entrei para o “Todos na Fraternidade” e a gente tem esse trabalho que é, de certa forma um trabalho preventivo, com crianças, além de dar um suporte para as mulheres. Trabalhei numa grande empresa como assistente social durante 19 anos, depois eu vim para a universidade. Essa minha vontade era de voltar para algo com a população. E no “Todos na Fraternidade” eu estou conseguindo fazer isso. 

“Primeiro eles dão comida para os cachorros e depois eles vão comer”, diz a professora Elisabeth

Nesse tempo que a senhora vem atuando, houve algum fato que  te decepcionou em alguma dessas instituições? 
Tem limitações quando você trabalha nessas áreas. A falta de apoio financeiro é muito grande. Você tem que lutar fortemente para conseguir alguma coisa. Uma característica bastante acentuada de exclusão social, porque tudo envolve dinheiro. Você tem que ter alimento. Você tem que ter um lugar para dar essa proteção, essa acolhida. Você tem que ter pessoas, e a gente sabe que o voluntário é aquela pessoa que tem aquela máxima boa vontade. Mas, são pessoas que também precisam trabalhar. Às vezes, não pode participar daquele momento porque está trabalhando. Essas entidades deveriam ter um pessoal que fosse contratado. A gente poderia, nessas ONGs, profissionalizar mais. Porque tem muito lugar em que acontece o assistencialismo que não leva nada para ninguém. Nós (assistentes sociais) queremos que as pessoas se emancipem. Por exemplo, eu converso com um morador de rua e respeito a dignidade daquela pessoa que já está sem dignidade, mas eu respeito o querer dele. Eu respeito o que ele fala para mim.

Existe a desinformação que atrapalha o avanço das políticas públicas ou a ajuda a essas pessoas?
A maior desinformação a gente tem, principalmente na sociedade brasileira, que é uma sociedade hipócrita. Eu acho que falta muito a mídia, falta o jornalismo tocar as pessoas com esse olhar mais humano, porque nós perdemos esse olhar. Nós estamos vivendo um momento caótico, que a civilidade parece que foi se dissipando e nós estamos vivendo em um mundo que não tem mais esperanças. Então, é para isso tem que lutar.