GATILHO ILUSTRADO: CHARGES E QUADRINHOS INFLUENCIAM A SOCIEDADE

por PAULO NASCIMENTO

Historicamente, o Brasil passa por diversas crises políticas passíveis de críticas de grandes chargistas brasileiros, artistas que muitas vezes foram responsáveis por importantes momentos que mudaram o rumo da política brasileira.  Nomes como Belmonte, durante o governo de Getúlio Vargas e mais tarde em meio à censura e a repressão da ditadura militar, e o jornalista e cartunista Henfil, que criticava a atuação dos militares e de seus apoiadores, com histórias e cartuns irreverentes e marcantes, são dois dos mais destacados cartunistas brasileiros.

A crise política atual, sem precedentes, a implosão da saúde pública por conta da pandemia do novo coronavírus, a economia em queda, os ataques do presidente da República às instituições democráticas, os incipientes movimentos em defesa da democracia compõem o cenário que  é um prato para os artistas, com suas charges, cartuns e ilustrações, compartilharem suas ideias e posicionamentos.

O ATIVISTA – “Na ilustração, nós somos treinados e especializados para vender ‘coisas’ e explicar um produto, para tornar uma mensagem mais compreensiva. Em algum momento eu percebi, porque não usar desse poder e aprendizado para promover ideias progressistas? Principalmente em um ambiente de ascensão do fascismo, de deturpação de ideias e até da tentativa de criminalização dessas ideias.”

A fala é de Cristiano Siqueira, designer e ilustrador conhecido nas redes sociais como Cris Vector. O artista tem trabalhos veiculados em grandes portais de comunicação como Mídia Ninja e o jornal Le Monde diplomatique.

Bolsonaro comemora as milhares de mortes por Covid-19 (Arte: @crisvector)

A charge criada por Cristiano representa o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, comemorando o total de mortes por Covid-19 no Brasil, em uma clara referência à polêmica da comemoração de inauguração da transposição do rio São Francisco, obra iniciada no governo de Luís Inácio Lula da Silva, adversário político de Bolsonaro.

A principal contradição presente na ilustração se dá pelo ato de comemorar uma conquista que não foi realizada pelo governo atual, em meio à tragédia resultante da ineficiência do Estado no controle da propagação do vírus no país, que contabiliza milhares de óbitos diários. Com a ilustração, o autor ao adicionar uma crítica contextualizada ao trágico período no qual fato ocorrido está inserido, dá um novo significado para a figura alegre do presidente expondo um lado que o registro histórico da fotografia original esconde.

O GRITO DE GUERRA – Essa resistência ao atual presidente do Brasil, nasceu na campanha eleitoral, mais precisamente em 29 de setembro de 2018, primeiro dia de veiculação, pelas redes sociais, das manifestações populares intituladas “Ele Não”.  O movimento foi liderado por mulheres e organizado originalmente no grupo “Mulheres Unidas contra Bolsonaro”, no Facebook. As participantes, motivadas pelas declarações misóginas e antidemocráticas do candidato, tinham como principal objetivo protestar contra a candidatura à presidência da República do então deputado Jair Bolsonaro. O movimento tomou grandes proporções durante o ano eleitoral e um dos fatores responsáveis pela divulgação e popularidade da mobilização foi uma ilustração de Cristiano Siqueira, amplamente veiculada nas redes sociais em apoio às manifestações.

Movimento “Ele Não” utilizou ilustração de Siqueira (Arte: @crisvector)

“Foi um retrato do Bolsonaro com a legenda ‘#elenão’. Eu imprimi cartazes e fui às manifestações. Então, a arte teve muita visibilidade na mídia e foi o primeiro trabalho no qual eu rompi e decidi fazer trabalhos envolvendo a política. Depois alguns grupos até usaram como capa nos eventos no Facebook das manifestações”, conta Cristiano.

Ao longo da história, outros cartunistas foram responsáveis por grandes bordões que permearam o vocabulário popular e difundiram movimentos sociais. O cartunista Henfil, por exemplo, foi quem clamou pelo movimento das eleições diretas para presidente da República, nos anos finais da ditadura militar. A popular frase “Diretas Já” amplamente utilizada nas manifestações da época, pode ser atribuída diretamente ao cartunista por meio de uma charge publicada em 1984 na revista IstoÉ.

Henfil criou o bordão Diretas Já! (Arquivo: Henfil)

Julio Cesar Souza, graduado em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de São Paulo – UNESP e professor de História no ensino médio, afirma que “é difícil encontrar uma charge dos personagens do Henfil em que não esteja embutida de uma grande crítica. Ele escreve o livro ‘Cartas da mãe’, como se estivesse mandando cartas à sua mãe, a Dona Maria, cantada pelo João Bosco e Aldir Blanc. Então temos Dona Maria, mãe do Betinho, que é o irmão do Henfil citado na música o Bêbado e a Equilibrista. Dessa forma ele criticava todo mundo. Nos anos 1980, a campanha para uma Assembleia Constituinte na qual o cartunista já falava em um estatuto da criança e do adolescente por meio das charges e dos desenhos”.

Outro cartunista, cronista e escritor, Benedito Carneiro, conhecido como Belmonte, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas representava as frustrações da classe média paulistana com a personagem “Juca Pato”, que fez sucesso na “Folha da Manhã” (atual Folha de S. Paulo) com suas críticas ao presidente e à Aliança Liberal. Entre 1939 e 1945, o cartunista publicou cerca de 450 charges que satirizavam Adolph Hitler e a ideologia nazista, até que às vésperas da rendição alemã em 1945, Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, atacou abertamente o artista em uma de suas derradeiras transmissões pela “Rádio Berlim”. De acordo com o ministro, “certamente, o artista foi pago pelos aliados ingleses e norte-americanos”.

Obrigado Dr. Goebbels! foi a resposta de Belmonte à crítica feita pelo nazista (Reprodução: “BELMONTE”)

SIMPLIFICAÇÃO DO SÍMBOLO – A simplificação dos símbolos é uma das principais características das charges e dos quadrinhos. Com a imagem é simplificada, o seu significado ganha força de modo que uma pequena quantidade de elementos agrega em si um imenso significado. A técnica é amplamente utilizada por Cristiano Siqueira. “Eu sempre gostei deste tipo de simplificação, porque ela transforma um retrato ou uma imagem em um ícone, então a simplificação torna um retrato icônico, passando a não mais significar apenas um rosto, mas tudo que a ele está agregado. Eu sempre tentei buscar este tipo de influência no meu trabalho e para o trabalho político e ativista, a simplificação traz a mensagem mais forte, é como se fosse um soco”.

Publicado em 1982, escrito por Alan Moore e ilustrado por David Lloyd, o quadrinho “V de Vingança” é considerado uma das obras mais importantes na construção de símbolos na atualidade, listado pela BBC News em uma lista dos 100 romances “mais inspiradores”. Com teor crítico e político, a história constrói um futuro distópico no qual um revolucionário tenta destruir um Estado Totalitário por meio de ações diretas.

V for Vendetta #1 publicado em outubro de 1988 por DC Comics

A personagem principal “V” utiliza uma máscara icônica inspirada por Guy Fawkes, grande personalidade do século XVII, durante a chamada Conspiração da Pólvora. A representatividade da personagem é tamanha que suas simbologias são utilizadas até os dias atuais, em diversas manifestações populares e artísticas ao redor do mundo. Julio Souza confirma a importância, ao explicar que “a história do quadrinho V de Vingança escrita no começo dos anos 1980 é uma crítica direta a Margaret Thatcher. A obra é uma referência à Guy Fawkes, que em 1605, desejava pôr abaixo o parlamento inglês e o evento é considerado por alguns historiadores como o primeiro movimento anarquista. A ideia seria pôr abaixo os conceitos políticos e religiosos da sociedade. É de extrema força imaginar, por exemplo, que desde 2008 o grupo ‘Anonymous’ utiliza a máscara do ‘V’ como símbolo. Então, é uma personagem criada nos anos 80, cuja relevância de sua imagem continua sendo usada até os dias de hoje em movimentos sociais”.

(Os artigos publicados com a rubrica ANÁLISE & OPINIÃO exprimem a opinião de seus autores e não representam, necessariamente, a posição editorial da AGE – Agência Unaerp de Notícias Online, projeto didático-laboratorial do curso de Jornalismo da Unaerp)

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