Desde o início da pandemia, 810 médicos morreram por Covid-19, de acordo com o Conselho Federal de Medicina. Ao lado desses profissionais, a situação do pessoal de enfermagem também foi pesada. Entre enfermeiros, técnicos e auxiliares foram 567 mortos de março de 2020 a janeiro deste ano, mês em que 47 perderam a vida, um aumento de 422% em comparação a dezembro. Somando com os médicos, no total morreram 1.377 profissionais de saúde.
Segundo o estudo “Prevalência de transtorno de estresse pós-traumático após pandemias de doenças infecciosas no século XXI, incluindo covid-19: uma meta-análise e revisão sistemática” que foi publicado na Revista Molecular Psychiatry, seis meses após o início da pandemia, houve uma prevalência de 30,8% de casos de transtornos pós-traumáticos em profissionais da linha de frente.
De acordo com Marcela Bonareli, responsável pelo Setor de Enfermagem do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HC), sua rotina de enfermeira-chefe se tornou muito mais corrida devido ao aumento de funcionários no centro de terapia intensiva de Covid. Por consequência, a demanda burocrática também aumentou, o que acabou por causar uma grande onda de exaustão física e emocional em todos os enfermeiros que operam nos plantões médicos, principalmente nos momentos em que se intensificam as intercorrências.
Adilson Duarte dos Santos, médico intensivista e clínico geral que trabalha no Centro de Hipertensão de Ribeirão Preto, afirma que toda a sua rotina mudou com a pandemia. Suas noites de sono são mais curtas e seu horário de almoço, muitas vezes, dura apenas meia hora. “Em 35 anos de formado, eu nunca presenciei uma situação tão grave quanto essa pandemia, onde até examinar um paciente é risco total de morte. Dois pacientes espirram durante a consulta e você pensa que pode levar o vírus para casa. Você acaba ficando muito abalado. De longe, o que mais mudou foi o emocional.”
ROTINA DA LINHA DE FRENTE
De acordo com os resultados da pesquisa Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em todo o território nacional, a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% desses trabalhadores, que estão vivendo de forma ininterrupta a pandemia por mais de um ano.
De acordo com Camila Polisello, psicóloga do HC, a pandemia trouxe uma nova realidade no cotidiano de muitos brasileiros. No entanto, as mudanças que ocorreram no dia a dia dos profissionais de saúde são muito mais intensas. “Os profissionais são expostos a mudanças constantes nas suas rotinas, o que não favorece uma habituação. Então, sempre estão em alto nível de estresse”, afirma a psicóloga. “Caso ocorra uma falha, a consequência é muito grave, às vezes letal. Os profissionais estão expostos a cenários de constantes perdas, lidando com o sofrimentos e dores dos outros, jornadas de trabalho elevadas e isso de forma permanente até o fim da pandemia”, completa.
(Arquivo Pessoal)
“É um risco total a cada minuto”, afirma o médico Duarte. “Quando se examina um paciente, não tem como não ficar próximo dele, mesmo com a máscara, sua segurança ainda não é uma certeza. É necessário ter fé e sorte, continuar seguindo em frente e não ser covarde como alguns médicos que fugiram da luta contra a Covid.”
PARANOIA E REVOLTA
Pesquisadores da ala de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília e do Hospital Universitário de Brasília (HUB) desenvolveram um estudo para analisar o impacto que a luta contra o novo coronavírus vem causando na saúde mental dos profissionais da saúde. Eles analisaram o comportamento dos residentes do HUB que estiveram envolvidos no atendimento a pacientes com suspeita de Covid, buscando identificar possíveis casos de insônia, depressão e ansiedade.
A pesquisa da faculdade apontou que dos três distúrbios comportamentais identificados a ansiedade é a que mais afeta os trabalhadores da linha de frente. “A ansiedade é sentida diante de uma situação que nos remete a algo que pode ser aversivo. Os profissionais da saúde cada vez mais experimentam essas situações. Essa ausência de controle e a impossibilidade de se afastar dessas situações contribuem para o quadro ansioso desses profissionais”, afirma a psicóloga Camila Polisello.
Uma parcela disso, de acordo com a pesquisa, se deve ao medo de se contaminar e eventualmente contaminar familiares que moram na mesma residência. A enfermeira chefe do HC diz que a visita à casa dos pais se tornou mais rara e que dentro de sua casa, ela e sua família mantêm os mesmos cuidados, com uso de máscara, distanciamento e higiene das mãos.
Para Duarte, seu maior medo é levar o vírus para sua família, já que não existe ainda vacina para todos. Ele também afirma que muitas vidas e sonhos foram perdidos por conta de uma virose que já possui cura e que se os políticos tivessem feito sua parte, muitas dessas vidas ceifadas poderiam ter sido salvas. “Fico revoltado em saber que me arrisco todos os dias e mesmo assim vejo na televisão metrôs e ônibus lotados, pessoas se aglomerando, com um vírus altamente contagioso ´correndo` por aí. Cada um tem que fazer sua parte e os políticos têm que ter bom senso.”
DIAGNÓSTICO DE GUERRA
De acordo com a psicóloga do HC, a diminuição de atividades prazerosas, a necessidade de permanecer isolado e o distanciamento de familiares e amigos, contribuem para um quadro de depressão, onde se sentem incapazes de mudar ou controlar minimamente o ambiente em que as fontes de prazer são escassas.
De acordo com a pesquisa da Unb, os principais sintomas de depressão analisados foram o cansaço, dificuldade em se concentrar, falta de interesse e o mal-estar consigo mesmo. Além disso, 83,3% dos profissionais afirmaram ter dificuldades para dormir e 75% apresentaram quadros de sonolência diurna.
O intensivista e clínico geral Adilson Duarte conta que conheceu um jovem que foi a uma festa de aniversário, se contaminou e trouxe o vírus para casa, expondo seus pais e irmãos ao vírus. A família toda, inclusive o jovem, faleceu. “Uma família inteira acabou, porque as pessoas não conseguem esperar meses até a maioria ser vacinada para assim fazer festas, churrascos e viajar. É tudo muito triste”
O medo de que algo pior aconteça foi constatado por 41,7% dos profissionais ouvidos pela pesquisa do HUB em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, e 91,7% dos entrevistados da pesquisa afirmaram não ter esperança de uma melhora para a situação no futuro.
“O fim da pandemia ainda é muito incerto, o que pode contribuir para o agravamento na condição psicológica desses profissionais. O que podemos prever é o aumento no consumo de medicações psiquiátricas e o aumento no uso de substâncias psicoativas, e uma maior ocorrência de quadros de transtornos ansiosos como o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e Transtornos de Estresse pós-traumático”, prevê Camila Polisello.
De acordo com a versão de 1983 do Juramento de Hipócrates, o pai da medicina, ser médico é prometer solenemente consagrar a própria vida a serviço da humanidade, sem que diferenças em religião, nacionalidade, raça, partido político ou posição social se interpõem entre seu dever e seu paciente, e guardar respeito absoluto pela vida humana desde o início, e não usar de seus conhecimentos médicos contra as leis da humanidade. Para Adilson Duarte dos Santos, ser médico é a realização de um sonho de criança, é possuir o encantamento de ajudar o próximo, salvar vidas, diminuir o sofrimento e a dor.
“Tive um irmão que faleceu de poliomielite, ele estava obcecado em ser médico, porém o destino foi cruel. Em uma cirurgia, acabou perdendo sua vida por conta de um erro humano. Isso me deu força para lutar e me tornar médico.” O cardiologista do Centro de Hipertensão de Ribeirão Preto também afirma que lidar com a morte é um desafio, mas que é gratificante conseguir dar alta na UTI para pacientes que, com certeza, teriam morrido sem sua intervenção.