SAÚDE MENTAL NO FRONT DA GUERRA

30,8% dos profissionais de saúde que atuam na linha de frente Covid-19 sofrem estresse pós-traumático
por PEDRO SOLLY E RODRIGO TRINDADE

Desde o início da pandemia, 810 médicos morreram por Covid-19, de acordo com o Conselho Federal de Medicina.  Ao lado desses profissionais, a situação do pessoal de enfermagem também foi pesada. Entre enfermeiros, técnicos e auxiliares foram 567 mortos de março de 2020 a janeiro deste ano, mês em que 47 perderam a vida, um aumento de 422% em comparação a dezembro. Somando com os médicos, no total morreram 1.377 profissionais de saúde.

Segundo o estudo “Prevalência de transtorno de estresse pós-traumático após pandemias de doenças infecciosas no século XXI, incluindo covid-19: uma meta-análise e revisão sistemática” que foi publicado na Revista Molecular Psychiatry, seis meses após o início da pandemia, houve uma prevalência de 30,8% de casos de transtornos pós-traumáticos em profissionais da linha de frente.

De acordo com Marcela Bonareli, responsável pelo Setor de Enfermagem do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HC), sua rotina de enfermeira-chefe se tornou muito mais corrida devido ao aumento de funcionários no centro de terapia intensiva de Covid.  Por consequência, a demanda burocrática também aumentou, o que acabou por causar uma grande onda de exaustão física e emocional em todos os enfermeiros que operam nos plantões médicos, principalmente nos momentos em que se intensificam as intercorrências.

Marcela Bonarelli, responsável pelo setor de enfermagem do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (Arquivo Pessoal)

Adilson Duarte dos Santos, médico intensivista e clínico geral que trabalha no Centro de Hipertensão de Ribeirão Preto, afirma que toda a sua rotina mudou com a pandemia. Suas noites de sono são mais curtas e seu horário de almoço, muitas vezes, dura apenas meia hora. “Em 35 anos de formado, eu nunca presenciei uma situação tão grave quanto essa pandemia, onde até examinar um paciente é risco total de morte. Dois pacientes espirram durante a consulta e você pensa que pode levar o vírus para casa. Você acaba ficando muito abalado. De longe, o que mais mudou foi o emocional.”

ROTINA DA LINHA DE FRENTE
De acordo com os resultados da pesquisa Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em todo o território nacional, a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% desses trabalhadores, que estão vivendo de forma ininterrupta a pandemia por mais de um ano.

De acordo com Camila Polisello, psicóloga do HC, a pandemia trouxe uma nova realidade no cotidiano de muitos brasileiros. No entanto, as mudanças que ocorreram no dia a dia dos profissionais de saúde são muito mais intensas. “Os profissionais são expostos a mudanças constantes nas suas rotinas, o que não favorece uma habituação. Então, sempre estão em alto nível de estresse”, afirma a psicóloga. “Caso ocorra uma falha, a consequência é muito grave, às vezes letal. Os profissionais estão expostos a cenários de constantes perdas, lidando com o sofrimentos e dores dos outros, jornadas de trabalho elevadas e isso de forma permanente até o fim da pandemia”, completa.

Psicóloga Camila, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde atua na linha de frente da Covid-19
(Arquivo Pessoal)

“É um risco total a cada minuto”, afirma o médico Duarte.  “Quando se examina um paciente, não tem como não ficar próximo dele, mesmo com a máscara, sua segurança ainda não é uma certeza. É necessário ter fé e sorte, continuar seguindo em frente e não ser covarde como alguns médicos que fugiram da luta contra a Covid.”


PARANOIA E REVOLTA

Pesquisadores da ala de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília e do Hospital Universitário de Brasília (HUB) desenvolveram um estudo para analisar o impacto que a luta contra o novo coronavírus vem causando na saúde mental dos profissionais da saúde. Eles analisaram o comportamento dos residentes do HUB que estiveram envolvidos no atendimento a pacientes com suspeita de Covid, buscando identificar possíveis casos de insônia, depressão e ansiedade.

A pesquisa da faculdade apontou que dos três distúrbios comportamentais identificados a ansiedade é a que mais afeta os trabalhadores da linha de frente. “A ansiedade é sentida diante de uma situação que nos remete a algo que pode ser aversivo. Os profissionais da saúde cada vez mais experimentam essas situações. Essa ausência de controle e a impossibilidade de se afastar dessas situações contribuem para o quadro ansioso desses profissionais”, afirma a psicóloga Camila Polisello.

Uma parcela disso, de acordo com a pesquisa, se deve ao medo de se contaminar e eventualmente contaminar familiares que moram na mesma residência. A enfermeira chefe do HC diz que a visita à casa dos pais se tornou mais rara e que dentro de sua casa, ela e sua família mantêm os mesmos cuidados, com uso de máscara, distanciamento e higiene das mãos.

Para Duarte, seu maior medo é levar o vírus para sua família, já que não existe ainda vacina para todos. Ele também afirma que muitas vidas e sonhos foram perdidos por conta de uma virose que já possui cura e que se os políticos tivessem feito sua parte, muitas dessas vidas ceifadas poderiam ter sido salvas. “Fico revoltado em saber que me arrisco todos os dias e mesmo assim vejo na televisão metrôs e ônibus lotados, pessoas se aglomerando, com um vírus altamente contagioso ´correndo` por aí. Cada um tem que fazer sua parte e os políticos têm que ter bom senso.”

 

DIAGNÓSTICO DE GUERRA
De acordo com a psicóloga do HC, a diminuição de atividades prazerosas, a necessidade de permanecer isolado e o distanciamento de familiares e amigos, contribuem para um quadro de depressão, onde se sentem incapazes de mudar ou controlar minimamente o ambiente em que as fontes de prazer são escassas.

De acordo com a pesquisa da Unb, os principais sintomas de depressão analisados foram o cansaço, dificuldade em se concentrar, falta de interesse e o mal-estar consigo mesmo. Além disso, 83,3% dos profissionais afirmaram ter dificuldades para dormir e 75% apresentaram quadros de sonolência diurna.

O intensivista e clínico geral Adilson Duarte conta que conheceu um jovem que foi a uma festa de aniversário, se contaminou e trouxe o vírus para casa, expondo seus pais e irmãos ao vírus. A família toda, inclusive o jovem, faleceu. “Uma família inteira acabou, porque as pessoas não conseguem esperar meses até a maioria ser vacinada para assim fazer festas, churrascos e viajar. É tudo muito triste”

O medo de que algo pior aconteça foi constatado por 41,7% dos profissionais ouvidos pela pesquisa do HUB em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, e 91,7% dos entrevistados da pesquisa afirmaram não ter esperança   de uma melhora para a situação no futuro.

“O fim da pandemia ainda é muito incerto, o que pode contribuir para o agravamento na condição psicológica desses profissionais. O que podemos prever é o aumento no consumo de medicações psiquiátricas e o aumento no uso de substâncias psicoativas, e uma maior ocorrência de quadros de transtornos ansiosos como o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e Transtornos de Estresse pós-traumático”, prevê Camila Polisello.

De acordo com a versão de 1983 do Juramento de Hipócrates, o pai da medicina, ser médico é prometer solenemente consagrar a própria vida a serviço da humanidade, sem que diferenças em religião, nacionalidade, raça, partido político ou posição social se interpõem entre seu dever e seu paciente, e guardar respeito absoluto pela vida humana desde o início, e não usar de seus conhecimentos médicos contra as leis da humanidade.  Para Adilson Duarte dos Santos, ser médico é a realização de um sonho de criança, é possuir o encantamento de ajudar o próximo, salvar vidas, diminuir o sofrimento e a dor.

“Tive um irmão que faleceu de poliomielite, ele estava obcecado em ser médico, porém o destino foi cruel. Em uma cirurgia, acabou perdendo sua vida por conta de um erro humano. Isso me deu força para lutar e me tornar médico.” O cardiologista do Centro de Hipertensão de Ribeirão Preto também afirma que lidar com a morte é um desafio, mas que é gratificante conseguir dar alta na UTI para pacientes que, com certeza, teriam morrido sem sua intervenção.

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