PANDEMIA DE COVID-19 PIORA CONDIÇÕES SANITÁRIAS DENTRO DOS PRESÍDIOS

Aumento de 190% dos óbitos pela doença nos 67 primeiros dias do ano agravam situação nas prisões
por Brenda Marchiori e Giulia Carvalho
Centro de Detenção Provisória de Pontal/SP (Brenda Marchiori e Giulia Carvalho)

Desde o início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, os presídios da Região Administrativa de Ribeirão Preto registraram, ao todo, oito mortes pela doença entre detentos e servidores penitenciários, segundo dados disponibilizados pela Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo (SAP) em 15 de abril de 2021. A data dos óbitos, contudo, não foi informada

No Brasil, em um monitoramento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os dados mostram que, somente nos primeiros 67 dias deste ano, ocorreram 58 mortes por Covid-19, um aumento de 190% comparado com o último trimestre de 2020. Segundo o CNJ, os casos de contaminação entre detentos aumentaram em 800% desde maio de 2020, um dado relevante que impõe medidas urgentes para minimizar as consequências da pandemia em presídios nacionais.

Na região de Ribeirão Preto, 1.480 detentos contraíram a doença desde o início da pandemia, sendo que 1.477 conseguiram se recuperar e três foram a óbito. De acordo com a SAP, nos casos suspeitos de Covid-19 entre os presos, o paciente é isolado e a Vigilância Epidemiológica local é contatada. Os servidores em contato com o paciente devem usar mecanismos de proteção padrão, como máscaras e luvas descartáveis. Se confirmado o diagnóstico, além de continuar seguindo os procedimentos indicados, o preso será mantido em isolamento na enfermaria durante todo o período de tratamento.

Número de presidiários nos centros de detenção da região de Ribeirão Preto (Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária – Dados atualizados até 15 de abril de 2021)

A ocorrência de óbitos é maior entre os servidores. No total, 266 funcionários testaram positivo para Covid-19 desde o início da pandemia e cinco foram a óbito.  Todo servidor com suspeita de diagnóstico de Covid-19 é afastado sob medidas de isolamento em sua residência, conforme orientações do Comitê de Contingência do Coronavírus e a SAP acompanha seu quadro clínico, fornecendo todo o suporte necessário para sua recuperação, segundo nota da própria Secretaria.

A pandemia de Covid-19, dentro dos presídios, é agravada ainda pela superlotação do sistema carcerário brasileiro. A superlotação é caracterizada pela relação da quantidade de detentos e a fração de metragem destinada a cada indivíduo. Na região de Ribeirão Preto, a taxa de ocupação dos presídios é de 141,59%, uma relação de 10.964 presos para somente 7.743 vagas.

Sérgio Kodato, doutor em psicologia e professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), diz que as consequências psicológicas da pandemia dentro dos presídios, com o aumento do isolamento e as mortes de funcionários e detentos levam a uma situação de pânico. “Isso tende, na verdade, a agravar todos os problemas decorrentes dessa aproximação com a doença e com a morte em um super isolamento”.

Um funcionário que não quer ser identificado, da CDP de Ribeirão Preto, afirma ter sentido psicologicamente o impacto da pandemia no seu trabalho.  “Todos sentiram, [nos] deixou mais vulnerável psicologicamente, já que você vê pessoas próximas morrendo”. Sobre atendimento psicológico, o funcionário afirma não ter conhecimento sobre qualquer apoio de psicólogos, tanto para os presidiários quanto para funcionários. Na unidade em que trabalha, ele relata ter disponível na equipe de saúde um médico, duas enfermeiras e um dentista.

No estado todo se repete o maior número de óbitos entre funcionários comparados com detentos. Em São Paulo, 13.437 presidiários receberam o resultado positivo do teste para Covid-19. Já entre funcionários o número foi bem menor, 3.546. Entretanto, os óbitos entre funcionários são quase o dobro de mortes de detentos, 76 óbitos entre os servidores e 44 entre os detentos.

Das 176 unidades prisionais do Estado de São Paulo, apenas 65 contam com equipe de saúde completa, segundo dados da SAP. Somente 37% do sistema penitenciário paulista, o maior do país, possuem  o número mínimo de profissionais de saúde necessários estabelecidos pela deliberação CIB-62/2012, documento que estabelece as diretrizes para atenção à saúde em nível estadual.

Kodato avalia que pela defasagem das equipes de saúde dentro de presídios, pode-se dizer que a saúde física e mental dos detentos não é uma prioridade nas políticas públicas prisionais. “Se fosse o atendimento seria muito melhor. Doenças graves como HIV, idosos acamados, todos esses prescindem de um melhor atendimento médico e psicológico. Isso impacta diretamente na saúde física e mental não só dos detentos, mas também dos funcionários”.

Servidores penitenciários que atuam na Região Administrativa de Ribeirão Preto (Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária – Dados atualizados até 15 de abril de 2021)

Segundo a SAP, uma equipe médica completa seria constituída por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, dentista, psicólogo e assistente social. A Portaria nº 482/2014 do Ministério da Saúde determina como deve ser a configuração das equipes de saúde prisionais no país, estabelecendo que “os serviços de saúde nos estabelecimentos prisionais serão conformados de acordo com a população prisional e o funcionamento dos serviços”. Contudo, a assessoria de imprensa da SAP afirma que das 176 Unidades Prisionais da pasta, 154 possuem algum profissional de saúde, sem informar os cargos e respectivas quantidades. Nas unidades prisionais onde não há atendimento de algum profissional de saúde, totalizando 22 unidades, o preso é atendido pela rede pública local de saúde.

As 65 unidades atendidas por equipes consideradas completas pela SAP, tem seus profissionais médicos contratados pelas prefeituras municipais, com recursos repassados pela Secretaria Estadual da Saúde, seguindo a deliberação CIB-62/2012. As determinações são para que haja uma equipe mínima de um médico, um enfermeiro, um cirurgião-dentista e dois auxiliares de enfermagem.  Em unidades com população entre 1.201 e 2.400 presos, deve haver duas equipes médicas.

Até 2019, o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NESC) inspecionou 100 unidades prisionais no estado e informou que  apenas cerca de 30% têm equipe nos termos da normativa estadual CIB-62/2012. Uma pesquisa feita pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em dezembro de 2019, antes da pandemia, mostrou que apenas 62% dos estabelecimentos penitenciários possuíam consultório médico. As condições dentro do sistema prisional brasileiro em épocas normais já são críticas e, agora, lutando contra uma pandemia, a batalha fica ainda mais desigual.  “Pode-se dizer, então, que o que está sendo conduzido é o que costumamos chamar de necropolítica, ou seja, políticas públicas voltadas para o adoecimento e para morte”, de acordo com Sérgio Kodato.

 

MEDIDAS PREVENTIVAS
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) protocolou uma série de recomendações para tentar conter o impacto da pandemia dentro das prisões brasileiras. Em 17 de março de 2020, a Recomendação nº 62, que previa a “adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo”, foi normatizada pela primeira vez, passando por prorrogações ao longo do ano e agora estende-se até ao final de 2021.

Para garantir que as recomendações sejam aplicadas, o Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), junto às Coordenadorias da Infância e Juventude dos Tribunais (CIJs), tornaram-se responsáveis pelo monitoramento e pela fiscalização das medidas adotadas na prevenção e tratamento da Covid-19 dentro das unidades prisionais.

A Justiça de São Paulo havia proibido visitas aos detentos de todas as unidades prisionais do Estado. No final de maio de 2020, a juíza Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro, da 9ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, concedeu liminar permitindo visitas virtuais, por entender que é inconstitucional manter os detidos sem contato com a família. Dentro dos CDPs, as medidas de contingência da Covid-19 são diversas.  Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária orientou aos familiares a continuarem telefonando para a unidade e disse que os projetos de envio de cartas ou e-mails semanais continuam ativos, além das visitas virtuais por vídeo chamada.

A assessoria de imprensa da SAP publicou um comunicado estabelecendo que “devido à pandemia de Coronavírus (COVID-19) as regras para entregas de itens aos reeducandos, conhecidas popularmente como “jumbo” foram alteradas para garantir a segurança dos servidores, presos e familiares. Só será permitido o recebimento de itens por correspondência”. E acrescentou: “ainda esclarecemos que todos os reeducandos recebem material de higiene e limpeza, adquirido pelo Estado. Como medida de combate ao coronavírus, a entrega desse material vem sendo reforçada, com limpeza mais frequente dos espaços nas unidades prisionais”.

A SAP informa que está atenta às medidas de higiene e distanciamento social e, por isso, suspendeu atividades coletivas, intensificou a limpeza das unidades e limitou a entrada somente aos funcionários. “O Estado de São Paulo já distribuiu quase 6 milhões de máscaras para presos e funcionários, incluindo mais de 68 mil máscaras do tipo N95/PFF2. Além das máscaras, foram entregues aos presídios quase 3 milhões de luvas descartáveis, mais de 132 mil litros de álcool gel, 103 mil litros de sabonete líquido, entre outros insumos”, conforme informado em nota pela SAP. Outra medida que o órgão afirmou tomar é que todos os presos que chegam às unidades ficam de quarentena e os que apresentam sintomas de coronavírus são isolados. Contudo, segundo o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nesc), 77% das unidades do estado têm racionamento severo de água.

“Os detentos aceitaram de uma forma muito admirável as normas que foram impostas a eles, mesmo sabendo que dificultaram um pouco mais o acesso a seus familiares, mas concordaram que a única forma de os manter com o mínimo risco de contaminação essas medidas seriam necessárias”, de acordo com um funcionário penitenciário de Ribeirão Preto.

Em novembro de 2020, a SAP liberou visitas presenciais de familiares em 11 unidades prisionais da região de Ribeirão Preto, seguindo protocolos de segurança. Os encontros passaram a ter duração de duas horas, sendo limitados a uma pessoa por detento, desde que não se enquadre nos grupos de risco: crianças, idosos e gestantes. Pessoas entre 18 e 59 anos foram autorizadas mediante uso de máscara, medição de temperatura e saturação de oxigênio antes da entrada. Pessoas que apresentavam sintomas relacionados ao Covid-19 não estavam liberadas. O contato físico seguiu proibido e as visitas íntimas continuaram suspensas.

Gráfico mostra a situação da pandemia no sistema carcerário de São Paulo (Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária – Dados atualizados até 15 de abril de 2021)

ALERTA PARA A PANDEMIA DENTRO DOS PRESÍDIOS
No dia 24 de março, o governador João Doria anunciou a vacinação contra a Covid-19 de 180 mil profissionais da Segurança Pública. A vacinação teve início na primeira semana de abril, incluindo agentes penitenciários. Entretanto, presidiários não foram incluídos em qualquer grupo prioritário de vacinação e estão sem previsão para a imunização, o que mantém os riscos de contaminação dentro do sistema prisional e dali para fora dos presídios

Valdes Bollela, professor e pesquisador de doenças infecciosas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), avalia que seria muito importante a inclusão das pessoas privadas de liberdade entre os grupos prioritários. “A transmissão nos presídios, pela própria característica de aglomeração, favorece a transmissão do vírus”, afirma.

O pesquisador ainda alerta para a possível mutação do vírus dentro dos presídios. “Toda vez que se tem muita transmissão do vírus e essa transmissão é alta por muito tempo, o que a gente chama de platô- número de casos muito altos por muito tempo – a chance de aparecer mutação é muito maior.”

Sérgio Kodato diz que é necessário prestar atenção no avanço da pandemia dentro das unidades prisionais. “Os presídios podem ser inclusive fontes de uma terceira onda de contaminação, se não forem controlados”. Ele ainda explica que “como os presídios são porosos, entra e sai gente, é possível que se constituam numa nova fonte de contaminação da população em geral”.  Por isso, “a situação das unidades prisionais, dos detentos e dos agentes penitenciários deveria ser considerada prioridade em termos de saúde pública.”

 

DENÚNCIAS CONTRA O GOVERNO BRASILEIRO
No dia 23 de junho de 2020, quando a letalidade do Covid-19 era maior no sistema carcerário brasileiro do que fora dele, mais de 200 organizações denunciaram o governo Bolsonaro à ONU e à Organização dos Estados Americanos (OEA) por negligenciar os efeitos da crise de saúde pública nos presídios. Fatores como a superlotação, a falta de acesso a produtos de higiene e assistência médica fazem parte de um contexto de violações no cárcere e contribuem para a transmissão do vírus. A denúncia elenca ainda a carência do acesso à saúde, os obstáculos para o desencarceramento, a precariedade dos abrigos temporários, rebeliões e problemas relacionados com o registro de óbitos.

O país já havia sido alvo de denúncias anteriormente, quando se propunha a adoção de contêineres como celas prisionais durante a pandemia. O pedido encaminhado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) sugeria que as Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal fossem suspensas e que se permitisse o uso de contêineres para presos do grupo de risco, contaminados com sintomas leves e para instalações temporárias destinadas a atendimento médico.  Em 27 de abril de 2020, mais de 70 organizações da sociedade civil protocolaram denúncias à ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA por violações aos direitos humanos. O uso de contêineres como cela implica violações como manter pessoas presas em locais sem espaço, ventilação, acesso à água e com temperaturas que podem chegar a 50 graus Celsius, além de ser uma medida degradante e que viola a dignidade humana.  A proposta foi repudiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Supremo Tribunal Federal (STF), organismos internacionais, e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

 

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